Entrevista completa com Dom Armando Bucciol Dias para a seção Página Azul da Revista Caminhando de Junho/2023

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“A FÉ DA IGREJA ESTÁ CONTIDA NA LITURGIA”

Na seção “Página Azul” deste mês, temos a honra de entrevistar Dom Armando Bucciol. Nascido em Treviso, Itália, em 1991 ele veio para o Brasil como missionário fidei donum na Diocese de Caetité, na Bahia. Inspirado pelo Beato Papa João Paulo I, seu bispo durante o tempo no Seminário de Vittorio Veneto, Dom Armando se especializou em Liturgia Pastoral em Padova e estudou na Universidade Santo Anselmo, em Roma. Após 13 anos no Brasil, ele se tornou bispo diocesano de Livramento de Nossa Senhora, onde serviu por quase duas décadas antes de se tornar bispo emérito. Dom Armando teve um papel importante nas comissões de Liturgia e Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Ele foi um dos principais responsáveis pela nova tradução do Missal Romano, que será adotado por nossas comunidades neste ano. Nesta entrevista, Dom Bucciol discute o processo de atualização dos textos e seu impacto na renovação litúrgica da Igreja no Brasil, enfatizando sua importância na formação do clero, agentes pastorais e vivência dos sacramentos.

Na versão impressa da Revista Caminhando você teve acesso a um compilado com as partes principais dessa entrevista e aqui disponibilizamos todas as respostas na íntegra para que você tenha acesso a este rico conteúdo cedido a nós por Dom Armando. Caminhemos juntos.

Dom Armando, após quase duas décadas, o Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos finamente aprovou a terceira edição típica do Missal Romano para a Igreja no Brasil. Por que era necessário revisar a tradução deste tão importante livro?
DOM ARMANDO BUCCIOL (AB): Com a Instrução Liturgiam autenticam (28 de março de 2001), a Congregação (hoje Dicastério) para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos pediu a todas as Conferências Episcopais da Igreja Católica a revisão dos textos litúrgicos, destacando uma maior fidelidade ao texto original, em latim. O subtítulo afirma: Princípios que devem governar as traduções nas várias línguas modernas dos textos da Liturgia romana.
Por que essa cobrança? Antes de tudo, sabemos que toda língua, no decorrer do tempo, passa por mudanças, adquire novas expressões enquanto outras se tornam dessuetas. Por isso, de vez em quando, uma revisão é oportuna. Além disso, ao longo trabalho de revisão, constatamos o que a Congregação observava: algumas expressões, não eram fiéis ao texto originário. A pressa na realização da primeira tradução, a busca de uma linguagem mais ligada ao gosto do tempo, tinha sacrificado a sintética riqueza do latim e, às vezes, interpretado o texto de maneira imprópria.
Por isso, eis o pedido orientador do documento pontifício: “O léxico escolhido para uma tradução litúrgica deve ser ao mesmo tempo de fácil compreensão para as pessoas comuns e expressivo da dignidade e do ritmo retórico do original, uma linguagem destinada ao louvor e ao culto que exprima reverência e gratidão para a glória de Deus. Além disso, a língua destes textos não deve ser entendida como expressão da disposição interna do fiel, mas antes da palavra de Deus revelada”. Com esse espírito, a Comissão dos textos Litúrgicos da Conferência dos Bispos do Brasil (CETEL) procurou realizar, ao longo de tantos anos, esse trabalho. É importante enfatizar que não se trata de um novo Missal, mas somente de uma revisão da Terceira edição do Missal em língua latina da Congregação pontifícia.

Tal demora na aprovação da nova edição não pode implicar no risco dela já chegar desatualizado em nossas comunidades?
AB: Tendo acompanhado esse trabalho por bem 16 anos, isto é, desde o início dos textos propriamente litúrgicos (antes, tinha sido feita a revisão da Instrução Geral), posso dizer que esse risco foi superado. De fato, quando, em 2019, terminamos a revisão, as Edições CNBB imprimiram o Missal de forma provisória. Essa foi enviada a pessoas qualificadas nas diferentes áreas: bíblicas, teológicas, litúrgicas, e também da linguística e da gramática. E realizou-se uma nova leitura de todos os textos. Esse trabalho continuou por mais de três anos. A pandemia limitou os encontros presenciais, mas realizamos virtuais mais de 70 reuniões virtuais de três horas. Acolhemos milhares de observações e sugestões, na maioria de pequenas correções, mas todas examinadas com afinco. Quando necessário, entrando em contato com os proponentes, mas entender melhor como também procurando o parecer de eminentes estudiosos.
Revendo os textos já aprovados nas Assembleias dos Bispos, percebemos a necessidade de “atualizar tantas expressões. A experiência adquirida ao longo dos anos tinha amadurecido em nós mesmos nova sensibilidade, além dos estímulos recebidos pelas propostas críticas de tantas mentes e competências. Então, a leitura proposta na avaliação geral dos Bispos (vários deles pediram colaboração de assessores) é fruto dessa última análise.

Qual a principal mudança que essa nova edição propõe?
AB: Quem ler ou escutar as orações da terceira edição, talvez, nem perceba mudanças. É preciso comparar com atenção para colher as numerosas substituições de palavras, a estrutura das frases, os acréscimos e as simplificações que aconteceram. Todavia, têm algumas mudanças que mais vão aparecer. Algumas a pedido da Congregação mesma, por exemplo, a conclusão da Coleta (no Missão da II edição chamada de Oração do dia: voltamos ao originário). Pode-se conferir na Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) onde, ao n. 54, pede-se de rever as conclusões. Por exemplo, quando a oração é dirigida ao Pai, diz-se: Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus, e convosco vive e reina, na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos; quando a oração é dirigida ao Pai, mas no fim menciona o Filho: Ele, que é Deus, e convosco viva e reina…; quando se dirige ao Filho: Vós que sois Deus, e viveis e reinais com o Pai, na unidade do Espírito Santo,…
Significativas mudanças se encontram nas aclamações depois da Consagração: Eis o Mistério da fé! Foi tirado “Eis o” e a resposta será: Anunciamos, Senhor, a vossa morte… Mas outros convites foram acrescentados, cada qual com resposta própria: Mistério da fé e do amor! Resposta: Todas as vezes que comemos deste pão… Outra: Mistério da fé para a salvação do mundo! Resposta: Salvador do mundo, salvai-nos,,, O trabalho mais exigente se deu nas revisão minuciosa das Preces Eucarísticas. Cada palavra foi examinada e discutida, procurando a absoluta fidelidade teológica nas expressões e, ao mesmo tempo, os termos mais compreensíveis. Também foram tiradas ou deslocadas algumas aclamações.
Só um exemplo, na I Oração Eucarística, o Cânon Romano. Pai de misericórdia, / a quem sobem nossos louvores, / nós vos pedimos por Jesus Cristo, / vosso Filho e Senhor nosso, / que abençoeis + estas oferendas, apresentadas ao vosso altar. A assembleia aclama: Abençoai nossa oferenda, ó Senhor! / Nós as oferecemos pela vossa Igreja santa e católica:/ concedei-lhe paz e proteção / unindo-a num só corpo / e governando-a por toda a terra. / Nós as oferecemos também / pelo vosso servo o Papa N., / por nosso Bispo N., / e por todos os que guardam a fé / que receberam dos Apóstolos. / A assembleia aclama: Conserva a vossa Igreja sempre unida!
A nova tradução: Pai de misericórdia, / a quem sobem nossos louvores, / suplicantes, vos rogamos e pedimos / por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, /que aceiteis e abençoeis + estes dons, / estas dádivas, este sacrifício puro e santo, / que oferecemos, / antes de tudo, pela vossa Igreja santa e católica: / concedei-lhe paz e proteção, / unindo-a num só corpo / e governando-a por toda a terra, / em comunhão com vosso servo o Papa N., / o nosso Bispo N., / e todos os que guardam a fé católica / que receberam dos Apóstolos. A assembleia aclama: / Abençoai nossa oferenda, ó Senhor!

Os textos traduzidos refletem uma volta à originalidade da língua latina. O senhor acredita que retomar às fontes, mesmo numa época de empobrecimento da linguagem, poderá ajudar nossos fiéis a melhor celebrar e compreender o mistério eucarístico?
AB: Respondo, recordando mais uma orientação da Instrução Liturgiam autenticam: “A Igreja possui temas específicos para comunicar e um estilo expressivo que lhes é apropriado. A tradução caracteriza-se como esforço de colaboração com a finalidade de preservar a máxima continuidade possível entre o original e o texto em língua vernácula”. Procurando fidelidade e liberdade nessas recomendações. Portanto, como observei, as mudanças não são tão evidentes ao ponto de se falar de uma nova tradução. Não! Trata-se de retoques que, repito, na quase totalidade dos casos, somente quem bem conhece e pratica os textos litúrgicos vai perceber. Para uma melhor compreensão desses textos, exige-se uma aprimorada formação litúrgica geral e a introdução na compreensão dessa linguagem que vem de outros séculos e bem diferente sensibilidade cultural, espiritual e linguística.
Desejo que a nova edição do Missal estimule nos fiéis, e também nos presidentes das celebrações, um melhor conhecimento dos conteúdos das orações que a liturgia proporciona. A riqueza teológica e espiritual dessas orações, que a toda celebração a liturgia coloca em nossos lábios e corações, é extraordinária. Aprender a orar com os conteúdos da liturgia, também adaptando a linguagem à sensibilidade de cada pessoa e grupo cultural, com certeza, pouco a pouco, ajuda a moldar a vida espiritual dos orantes.

Neste momento em que as comunidades precisarão se adaptar aos novos textos, pode ser uma ocasião propícia para uma renovação litúrgica, contribuindo tanto na formação do clero e dos nossos agentes, bem como na prática e vivência sacramental?
AB: Sim, como disse, espero e desejo que essa nova edição do Missal se torna preciosa oportunidade para refletir, também, sobre: o que é o Missal? Qual sua origem? Sua história? De onde vieram as orações propostas pela liturgia de nossa Igreja? É uma história em que conduz aos primeiros séculos da Igreja. Camadas depositadas na memória cultural e espiritual de antiga origem chegaram até nós e a Igreja transmite não como depósito envelhecido, mas como patrimônio a ser custodiado e rejuvenescido com melhor e renovada compreensão. Nessas preces, está contida a fé da Igreja. Já no quinto século, Próspero de Aquitânia ensinava que a lei do orar deve estabelecer a lei do crer! Isto é, a fé da igreja é contida na liturgia, antes do que nos Catecismos! De fato, antes que a Igreja elaborasse o seu Credo (nos Concílios de Niceia – 325- e Constantinopla – 381), já orava com as orações eucarísticas. A atual II – introduzida nos anos 70 do século passado, com algumas variantes – é do ano de 215; o Cânon Romano do IV século! Muitas das orações do Missal, são dos séculos quinto e sexto. Expressões que podem aparecer obsoletas, mas que contêm e expressam a fé que recebemos dos apóstolos e que nós “com alegria” continuamos a professar.
Oportuno se faz, todavia, que seja proposto – nas dioceses, paróquias, comunidades, pastorais, movimentos e grupos – um estudo teológico e espiritual para compreender e valorizar, acima de tudo, a Oração Eucarística – com suas várias expressões – síntese sublime da nossa fé. Tenho certeza de que, se isso acontecer, toda a nossa vida eclesial vai melhorar. Desejo que os pastores de nossa Igreja, com a colaboração de mestres e doutores, juntem forças para que isso aconteça, sem pressa, com adequada reflexão. Assim (re)descobriremos a riqueza dos conteúdos do nosso orar.
Ao longo dos trabalhos da CETEL, às vezes, ficávamos encantados com certas expressões orantes e alguém observava: “Que bonita esta oração! Dá para uma catequese, uma homilia, uma meditação”.

Dom Armando, se por um lado há um certo empobrecimento da linguagem atualmente, por outro há um excesso de criatividade em nossas celebrações litúrgicas. Como a Pastoral Litúrgica, a partir do novo missal, pode ajudar nossas Igreja a melhor celebrar, fazenda com que a beleza do Cristo na Eucaristia brilhe mais do que as nossas “invenções”?
AB: Excesso de criatividade? Tenho minhas dúvidas! Ao menos, a respeito da criatividade verdadeira. A criatividade não consiste em gestos chamativos ou extravagantes, palavras, dinâmicas ou invenções com o intuito de deixar de boca aberta e batendo palmas os participantes da liturgia, quase expectadores de espetáculo! Para isso, já existe teatro, esporte, circo. Essa chamaria de criatividade selvagem! Na liturgia, existem outras possibilidades para criar expressões e gestos, que, porém, devem vir de dentro, de quem preside e dos que participam. Penso numa proposta conciliar, que ainda encontra escassa criatividade: as preces dos fiéis. Normalmente, se leem apressadamente as do folheto; melhor seria, como fazem algumas comunidades, elaborar orações ligadas à vida da comunidade, da igreja e do mundo, com o espírito proposto pela liturgia. Um modelo bonito nos é proposto pela Liturgia das Horas (Laudes e Vésperas).
A verdadeira criatividade se exerce no estilo de quem preside e no relacionamento, sóbrio e verdadeiro, dele com a Assembleia, na modalidade de proclamar os textos bíblicos, no jeito dos cantores usar (ou menos) o microfone, no carinho com que as pessoas são acolhidas por parte dos animadores da liturgia, na qualidade (e duração) da homilia, na modalidade de realizar a apresentação das oferendas, no ritmo celebrativo, em geral.
A Pastoral Litúrgica fadiga a ser implantada em nossas Comunidades. Prevalece o fazer (tantas vezes, o bom e belo fazer), mas a identidade da Pastoral litúrgica é de ser Pastoral que anima, ilumina, compenetra, com suas mensagens e estilo de vida, as demais pastorais, dimensões e expressões da vida eclesial, a fim de compreender e testemunhar o que celebramos, para viver não só a, mas da liturgia.
A todos os irmãos e as irmãs que amam sinceramente a liturgia e procuram vivê-la, mãos à obra. A chegada da terceira edição do Missal seja oportunidade preciosa para melhorar nossas celebrações, a vivência e o testemunho eclesial. Se isso acontecer… valeu a pena o longo e empenhativo trabalho de revisão.