Entrevista completa com Gabriella Dias para a seção Página Azul da Revista Caminhando de Maio/2023

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Neste ano, a missionária Gabriella Dias completa 10 anos como Assistente Apostólica da Comunidade Shalom, uma das maiores Associações Privadas de Fiéis do mundo. Este reconhecimento à Shalom pode ser confirmado na última nomeação feita pelo Papa Francisco, que designou o Sr. Moysés Azevedo, fundador da comunidade, como membro do Dicastério para a Evangelização. Desde 2018, Gabriella que é consagrada como Comunidade de Vida e é celibatária, também foi escolhida para compor a direção do Charis, Serviço Internacional de Comunhão que reúne diversas expressões carismáticas presentes na Igreja Católica e está ligado à Santa Sé por meio do Dicastério para os Leigos, Família e Vida. Ela é a nossa convidada da seção Página Azul da edição de maio da Revista Caminhando e nos ajudará a melhor compreender o crescente fenômeno das Novas Comunidades na Igreja Católica. Aqui você terá acesso a um resumo das respostas da nossa entrevistada e, por meio do QR Code e do link no final da Página  Azul, você poderá acessar o podcast com o conteúdo completo da entrevista.

A sociedade atual, cada vez mais secularizada, exige da Igreja uma nova forma de anunciar a Palavra de Deus, ou seja, uma nova evangelização. Podemos dizer que as Novas Comunidades são uma resposta do Espírito Santo a este nosso tempo? Quais as implicâncias de se compreender como um dom, oferta ou privilégio?
– GABRIELLA DIAS: Sim, com muita gratidão, reconhecemos o protagonismo do Espírito Santo ao gerar novas comunidades, comunidades que têm uma espiritualidade carismática, comunidades que têm uma primazia do Espírito Santo. As comunidades novas, por terem uma espiritualidade carismática, têm como fonte da sua espiritualidade a renovação do Batismo. Uma graça de adesão ao batismo sagrado, uma graça de usufruto do batismo sacramental, que nos faz ter essa percepção do Espírito Santo como a alma da nossa alma. Como nossa vida, como Deus em nós, que age, fala, nos impele a agir, que nos impele a falar melhor, dizendo que nada nos impede de viver de uma maneira nova. Realmente, como batizados, compreendemos que o Espírito Santo é o nosso motor, que nos faz viver em família, que nos faz viver em sociedade, que nos faz viver como cristãos, dar respostas evangélicas aos nossos desafios. Cada comunidade nova nasce dessa consciência profunda de ser batizado. Uma consciência que não é formada intelectualmente, mas uma consciência que é formada pela graça. Percebemos nas comunidades novas esse protagonismo do Espírito Santo, que nos faz louvar a Deus, reconhecer a bondade de Deus, a sua misericórdia. As comunidades novas não foram ideias geradas no escritório ou geradas numa reunião e que se concretizaram, surgiram sobre esse impulso do Espírito Santo, dando a alguns essa consciência forte de Batismo, forte de ser Igreja, leigos também sacerdotes, homens, mulheres, jovens, sobretudo, que se colocaram à disposição do Espírito, um novo tempo evangelizador. Um tempo evangelizador, como diz o Papa São Paulo VI, começa com o testemunho de vida. Não um testemunho moralista, mas um testemunho de alegria por viver no espírito, um testemunho de leveza por viver um fardo leve que nosso Senhor nos dá, a alegria de poder viver da providência divina, compreendendo que tudo está sob o governo de Deus. O Espírito Santo que comunica essa alegria, faz com que cada uma dessas pessoas firmes pelo seu batismo possam testemunhar que ser cristão é viver plenamente. Outro aspecto dessa evangelização, desse serviço à Igreja, é o anúncio explícito. O Espírito Santo gera nessas pessoas o desejo de além de testemunhar com a própria vida, anunciar com suas palavras Jesus. Ele tem o governo de todas as coisas, é digno de nossas vidas, de nosso louvor, é o nosso salvador e por isso merece que vivamos para ele, a partir dele, com os pensamentos dele, fazendo da nossa vontade a vontade dele, buscando os interesses desse amor por Jesus. Faz com que também esses leigos presentes nas comunidades novas o anunciem, falem dele, como de um amigo, mas não um amigo que faz o que eu quero, mas um amigo que é Senhor, um amigo que é digno.

Na contramão de muitos setores da Igreja que não conseguem atrair pessoas, principalmente os mais jovens, as novas comunidades vivem um momento de “encantamento” com esse segmento da sociedade e da Igreja. A que fator se deve isso para você?
– GD: Eu era uma estudante de medicina, tinha dezessete anos, quando fui convidada para participar de um grupo de oração por uma jovem da minha turma de colégio. É interessante esse primeiro convite, né?! Não foram meus pais que mandaram eu ir, foi a igreja que me chamou para ir, a Igreja enquanto instituição. Assim, não era um dever. Uma colega de sala de aula me convidou para ir a um grupo de oração no sábado à tarde. Quando cheguei lá, esse grupo de oração era coordenado por outros jovens. Jovens alegres, que cantavam e que conduziram uma oração profunda. Nós vivemos ali uma hora de oração comunitária com cânticos, com súplicas, com louvor e com a palavra de Deus. Aquilo já me chamou a atenção. Em pouco tempo, fui conhecendo quem eram aqueles jovens. Eles eram missionários, e a coordenadora tinha vinte e quatro anos. Ela vinha da Bahia, de Salvador, e era consagrada como comunidade de vida, Shalom. Me impactou uma jovem de vinte e quatro anos que deixou tudo e que era missionária ali em Natal, onde eu vivia. E naquele primeiro instante, já experimentei dentro de mim um desejo de viver isso. É interessante que, à medida em que fui conhecendo esses missionários e conhecendo os outros jovens do grupo de oração, eu via neles uma liberdade, uma alegria. Eram jovens pé no chão, estudavam, tinham famílias e conviviam com esses jovens missionários, e todos tinham essa marca muito forte de alegria e de acolhimento. Eu me senti extremamente acolhida. Não era uma jovem de classe social alta. Meus pais com esforço me educaram em escola particular e me enviaram para Natal estudar medicina. Mas, não estavam ali preocupados com minha classe social ou minha universidade. Não havia distinção de pessoas. Aqui entra outro ponto, a proximidade. Era uma fraternidade muito forte. De repente, a gente se sentia já uma família com aqueles irmãos. Fui progredindo no grupo de oração e, com pouco tempo, sete ou oito meses, eles precisavam que eu assumisse outro grupo de oração. Isso porque outros jovens estavam chegando, e me tornei coordenadora de grupo com pouco tempo de formação, pouco tempo de caminhada, mas me deram a formação para que eu assumisse esse novo grupo. Foram me dando a formação, me acompanhando pessoalmente. Eu fazia parte de reuniões de formação. É muito interessante porque ali naquela convivência do grupo de oração, fui tendo uma responsabilidade, vivendo o que se chama de protagonismo junto a eles. Então, foi uma experiência muito interessante e aqui vem o outro ponto: o protagonismo no serviço. Destaco esses três pontos a partir da minha própria história: a alegria do testemunho, a proximidade, a fraternidade, o espírito de família e o protagonismo que é dado aos jovens. O jovem chega ali, bebe daquela graça, participa, mas não é passivo. Rapidamente é convidado a contribuir, a colaborar, a ser um protagonista, a ser alguém que também vai construir aquela evangelização, vai construir aquela família, vai se tornar também um pai e uma mãe. Junto a isso, acredito também na minha experiência pessoal. Hoje, depois de trinta anos, acredito que esses jovens que vi ao longo dos anos se aproximando têm também a mesma marca, a mesma sede, a mesma busca que eu. Quais são outros pontos que nos marcam, que nos atraem nessas comunidades novas? A vida de oração profunda. As comunidades novas têm como característica a oração comunitária semanal. Nos reunimos semanalmente para rezar juntos em torno da palavra de Deus, motivados pelos carismas do Espírito Santo. Somos convidados também a uma oração pessoal diária. Há uma vida de oração constante. Essa vida de oração é feita de estudo bíblico diário. Somos convidados a reservar diariamente um tempo da vida para a oração pessoal, seja diante do Santíssimo Sacramento na adoração silenciosa, seja na oração silenciosa em seu próprio quarto e também ao estudo da palavra de Deus. Isso nos enraíza em Deus. A vida de oração profunda, vida de oração constante, diária, realmente atrai. Porque toda pessoa foi criada para essa relação de amizade com Deus. Na Comunidade Shalom, no meu grupo de oração, aos dezessete anos, comecei a ter estudo bíblico diário dirigido. Temos orientação da palavra de Deus e eu rezava ali meia hora naquele estudo bíblico, fazia mais meia hora de oração pessoal espontânea. Pouco a pouco, uma hora se tornou pouco. Comecei a desejar rezar mais um pouco e depois mais um pouco, até que comecei a ter duas horas de oração parada com Deus. Esse é o ritmo que os jovens vão vivendo, que as famílias vão vivendo. Isso também nos atrai muito, essa possibilidade de viver uma intimidade com Deus. Essa vida de oração também se concretiza nos sacramentos. Quando chegamos em uma nova comunidade como essa, começamos a desejar mais do que apenas a Santa Missa aos domingos. Sim, porque muitos de nós costumávamos ir à Missa somente aos domingos, mas passamos a desejar viver aquela intimidade com Deus e com a Igreja todos os dias. Por isso, muitos membros missionários e de grupos de oração nessas comunidades novas se dedicam a ir à Santa Missa diariamente. Além disso, a reconciliação é frequente, nos sentimos chamados ao sacramento da penitência, à confissão com mais frequência, não apenas na quaresma uma vez ao ano, mas se possível a cada mês. Essa vida de intimidade com Deus na oração pessoal e comunitária, juntamente com os sacramentos da Igreja, nos leva a viver uma atração forte e permanente por Deus e também a atrair outros jovens.

Mas, Gabriella, certamente nem tudo são flores e, com certeza, existem muitos desafios que as novas comunidades enfrentam no seu dia-a-dia. O que você pensa que hoje seja o grande empecilho para o crescimento e fortalecimento das novas comunidades?
– GD: Os desafios das novas comunidades são os desafios da sociedade de hoje, porque são formadas por jovens, homens e mulheres filhos deste tempo. Temos sido muito atacados por ideologias, pelo relativismo e crescemos numa cultura do provisório, numa cultura de não ter compromissos, uma cultura imediatista. Como diz o Papa Francisco tantas vezes, uma cultura de sofá ou de anestesia. Queremos sofrer o mínimo possível então todas essas características, de não querer sofrer, de querer tudo imediatamente de querer o mais fácil. As ideologias existem, tudo isso o homem, a mulher e o jovem trazem pra dentro da comunidade. Nós levamos para as comunidades novas isso que nós somos, o que  aprendemos e vivenciamos as feridas da nossa sexualidade, as feridas da nossa história. Chegamos assim para nos deixar plasmar pelo Espírito Santo, nos deixar formar pela graça de Deus, nos deixar curar e sabemos o que é a vida na graça. A vida de oração, a vida sacramental, a vida em comunidade, ela é fonte de cura, endireita, corrige, cura a nossa mentalidade mundana, nos dando uma mentalidade evangélica. Mas isso não acontece de uma hora para outra, vai acontecendo no decorrer do tempo. À medida que vamos aderindo à graça de Deus, permitindo-nos viver uma vida nova e uma conversão verdadeira, isso exige tempo, perseverança e compromisso. Nas comunidades novas, é necessário ter uma vida espiritual muito profunda e autêntica para que a graça de Deus prevaleça sobre o mundanismo e nossas fragilidades. Precisamos nos deixar auxiliar pelos pastores da igreja, nossos bispos que nos acompanham ou seus delegados. É importante também nos deixarmos acompanhar pelas pessoas mais experientes da comunidade, que ajudarão os mais jovens e as novas gerações a viverem de uma maneira ainda mais profunda sua conversão. Os mais antigos da comunidade já venceram muitas barreiras e superaram muitos desafios, e podem ajudar os mais jovens a superar suas próprias barreiras, feridas pessoais, feridas de sua história e feridas de sua mentalidade. Com a graça de Deus, os mais antigos ajudam os mais novos nesse processo. Em resumo, os desafios de uma comunidade nova refletem os desafios da sociedade atual. Os desafios que a Igreja enfrenta neste tempo são os mesmos da sociedade em geral, que tem valores contrários aos cristãos em todas as dimensões, como na família e nos relacionamentos. As feridas da sociedade atual também são as feridas das novas comunidades, pois todos vivemos neste tempo. Por isso, a perseverança é tão importante. Vivemos em uma sociedade que muitas vezes desiste do caminho logo no primeiro desafio, por isso, precisamos perseverar mesmo diante das dificuldades. A perseverança é um desafio que exige compromisso e dedicação. Precisamos ter a consciência de que Deus está trabalhando em nós e que esse processo leva tempo. Precisamos ter paciência conosco e com os outros, pois a paciência e a perseverança não são muito valorizadas em nossa sociedade atual.

Por se sentirem muitas vezes à margem das comunidades “tradicionais” e, consequentemente da Igreja. Corre-se o risco das novas comunidades se afastarem ou até mesmo seguir um caminho de ruptura? O que fazer para que isso não ocorra?
– GD: Neste tempo da Igreja, estamos observando uma grande aceitação e acolhimento das novas comunidades. Atualmente, muitos bispos estão convidando as novas comunidades para exercer um serviço particular em suas dioceses. Os pastores da Igreja, os bispos e o próprio Papa Francisco estão dando grande acolhimento às comunidades novas, de forma que elas não precisam mais se sentir marginalizadas. Talvez, no início, isso possa ter acontecido, mas hoje as comunidades mais antigas têm quarenta, quarenta e cinco anos de existência. A partir de nossa própria experiência, percebemos que há lugar para todos os carismas na Igreja. Os carismas mais antigos e as realidades mais tradicionais têm o seu lugar, mas graças a Deus, nesse tempo, as comunidades novas têm o seu papel e uma coisa não precisa substituir a outra. Não estamos em competição, já que a humanidade é enorme e precisa de toda a sua diversidade de dons e carismas para ser servida. Os bispos, as comunidades e as diversas expressões eclesiais compreendem cada vez mais que as novas comunidades também têm o seu lugar e papel na igreja, pois são mais uma expressão e vieram para somar. As novas comunidades oferecem uma contribuição particular e necessária à Igreja neste tempo, uma contribuição que não é melhor nem pior, mas é querida pelo próprio Espírito Santo. Em alguns lugares, no entanto, essas comunidades podem se sentir excluídas diante de algumas visões eclesiais. No entanto, a acolhida das comunidades novas pelo Papa Francisco e pelo Dicastério para Leigos, Família e Vida do Vaticano nos faz sentir incluídos e valorizados. Ver Moysés Azevedo, fundador da Comunidade Shalom e membro do Dicastério, é um exemplo de que a Igreja está aberta às novas comunidades e que sua contribuição é reconhecida. Isso nos faz sentir que estamos somando com as outras realidades da Igreja e não nos sentimos mais na periferia. Cada comunidade tem seu papel e lugar no jardim da igreja, e juntos oferecemos uma diversidade de dons e carismas para o serviço da humanidade. Isso é uma grande alegria e um grande dom. 

Como as novas comunidades podem trabalhar em colaboração com outras iniciativas da Igreja para promover a nova evangelização?
– GD: Cada comunidade nova tem um carisma próprio e um serviço específico dado por Deus. Cada Igreja local pode reconhecer esse dom e contar com a comunidade para o serviço que ela pode oferecer. Acredito na sabedoria de Deus, que gera dons de acordo com as necessidades e dá a cada comunidade uma identidade única, com uma maneira própria de viver a vida cristã e um serviço dentro da Igreja. A melhor maneira de servir à Igreja é cada um viver sua identidade e contribuir com isso. Tentar fazer com que uma comunidade realize o serviço de outra não é produtivo. Na Igreja, cada pastoral, movimento e comunidade tem seu próprio serviço, e o Espírito Santo os guia para realizar sua missão, cada um segundo sua identidade e carisma. A Igreja local tem muitas necessidades, como evangelizar os jovens, acompanhar as famílias, evangelizar nas ruas e nos cárceres. Acredito que reconhecer o dom de cada comunidade, movimento e carisma, e sua contribuição única, é a maior sabedoria. Quando tentamos fazer com que uma nova comunidade desempenhe o papel de uma pastoral, ela pode até conseguir, mas deixará de fazer aquilo para o qual ela nasceu, de fazer aquilo que o Espírito Santo lhe deu como identidade, serviço e carisma. Portanto, para as novas comunidades caminharem juntas com os demais serviços, é importante compreender a identidade e a contribuição de cada uma. Precisamos entender a identidade e a contribuição única de cada realidade eclesial, a fim de que, juntos, possamos servir à Igreja.

No ano passado a Comunidade Shalom chegou na Diocese de Nova Iguaçu com a abertura da Difusão da Obra. O que você tem a dizer para os membros, bem como aqueles e aquelas que se identificam com a comunidade aqui na Baixada Fluminense?
– GD: Sim, estamos muito felizes com a presença da Obra Shalom em Nova Iguaçu. É uma grande graça ter os grupos de oração Shalom, que se reúnem para rezar, crescem como família e testemunham a alegria de ser cristão e de ser Igreja, onde quer que vão. Por isso, esses grupos de oração também são grupos missionários. Quando testemunhamos aonde vamos, sobre o quanto é bom rezar, ser Igreja, evangelizar, viver a Eucaristia e servir a Igreja, atraímos outros. Queremos que esses grupos de oração gerem outros grupos de oração e sejam grupos missionários na diocese de Nova Iguaçu, buscando pessoas que estão longe da Igreja e de Deus, principalmente os jovens e famílias mais necessitadas do Evangelho. Eles são atraídos por pessoas que não iriam ainda a uma Santa Missa, mas aceitam um convite, assim como eu aceitei quando tinha dezessete anos. À medida que nossos grupos de oração crescerem na diocese de Nova Iguaçu, com a graça de Deus, poderemos servir ainda mais a Igreja, as famílias, os jovens e os pobres. Estamos aqui para servir e nos alegramos com a acolhida da diocese de Nova Iguaçu. Muito obrigado por nos deixar ser quem somos e por permitir que vivamos esse carisma a serviço da Igreja Particular de Nova Iguaçu. Agradecemos também pela acolhida aos primeiros que estão vivendo os grupos de oração. Que Deus abençoe a Obra Shalom de Nova Iguaçu e a Igreja de Nova Iguaçu, e que nos dê a graça de sermos o que Ele nos criou para ser, de vivermos a identidade Shalom e de contribuir humildemente para o serviço e o bem da Igreja de Nova Iguaçu. Shalom.